julho 12, 2013

Na noite passada eu sonhei, o livro.

Na noite passada eu sonhei... (1979). Medard Boss, Summus

Desde seus estudos acadêmicos o psiquiatra e psicoterapeuta suíço, Medard Boss (1903-1990) acreditava que a Medicina e a Psicologia haviam recebido más influências das teorias cartesianas e newtonianas. Sendo assim, desenvolveu a Daseinanálise publicando obras fundamentadas na fenomenologia-existencial. Os títulos foram: The Analysis of Dreams (1957), Psychoanalysis and Daseinsanalysis (1963), A Psychiatrist Discovers India (1965), I Dreampt Last Night (1978) e Existential Foundations of Medicine and Psychology (1979). Em 1994 editou um livro de seu amigo e mentor Heidegger intitulado Zollikoner Seminare.

Em seu livro Na noite passada eu sonhei... Medard aprofunda conhecimentos sobre o fenômeno do sonhar. O autor afasta o sonho dos conceitos de delírios e alucinações enquanto recompõe o ser humano mostrando que o fenômeno representa, na verdade, o modo de ser da pessoa também na vigília. Sem ignorar a presença onírica, ele clareia os significados e as referências trazidas pelo sonhante exemplificando exaustivamente esta condição humana.

O autor inicia o relato histórico fazendo referência ao precursor nas interpretações psicológicas dos sonhos, o psicanalista Sigmund Freud. Mentor e inspirador de Medard, Freud tem o mérito de ter sido o primeiro a valorizar e propor o estudo científico acerca do assunto, ainda que mantenha o viés simbólico característico da sua terapia também para a decodificação dos sonhos.

Em seguida, o autor faz críticas fenomenológicas às interpretações de Freud lamentando sobre a explicação dos sonhos partirem da premissa de uma “pisque” humana. Comparando e justificando seu conceito de unidade do ser humano, tanto no sonho quanto na vigília, contribui para a opinião de Rollo May quando este diz ser possível conhecer alguém pelos seus sonhos mesmo sem ver a pessoa. Faz também uma fundamental diferenciação entre sonhar e rememorar notificando as distorções feitas pela memória e enfatizando a possibilidade de todos poderem sonhar (p. 26-30).

Medard retém-se na explicação detalhada da condição humana, segundo ele de “um ser pensante” diferente das demais criaturas vivas e não vivas; os objetos. Elucida a condição de alteridade experimentada quando o ser humano se vê transformado, no sonho, em um cachorro para enfatizar a Daseinanálise dos sonhos. Repetidamente ele compara sua análise às demais linhas existentes na época contrapondo o arqueologismo simbólico de Freud, os arquétipos jungianos e às vezes o antropomorfismo de Skinner.

A delonga em se contrapor às demais linhas da psicologia dificulta a leitura e o entendimento da daseinanálise, sendo necessária considerável paciência e espírito investigativo para retirar de cada exemplo de interpretação de sonho alguns parágrafos de aplicação fenomenológica-existencial. Por diversas vezes passa a sensação de escrever mais sobre outros autores e interpretações que da própria daseinanálise.

Boss segue exemplificando possíveis abordagens dos sonhos de pessoas consideradas sadias. No primeiro deles reforça que a imagem de alguém conhecido, vista em sonho, deve ser considerada como presença sentida pelo sonhador enquanto que no segundo sonho contextualiza a região onde o recruta foi criado para exemplificar a influência da cultura vivida no comportamento demonstrado no sonho. O terceiro exemplo diferencia claramente a interpretação do simbólico psicanalítico para o significado que pode ser atribuído a qualquer dos objetos sonhados como é belissimamente registrado no quarto exemplo quando a sonhante adentra uma selva. Neste momento Medard refaz toda a amplitude de significados do que é, de fato, um local selvagem sem os apelos sexuais; reitera uma crítica à interpretação de Freud sobre um sonho semelhante descrito nos primeiros parágrafos do livro.

Outros exemplos mostram como é possível interpretar um sonho de gigante pela própria natureza do medo que o mesmo pode gerar ou a solidão de estar num mundo onde ninguém mais existe. Os últimos sonhos apontam a dualidade vivida nos assassinatos que um recruta comete somente enquanto sonha, mas nunca na vida desperta e no parto de um filhote de elefante por uma mulher grávida que se percebe no corpo desse animal dando a luz.

O autor continua suas considerações nos 28 seguintes sonhos de pessoas consideradas mentalmente perturbadas traçando os limites do que se pode entender como “mentes perturbadas”. Recomeça relatando a interferência psicanalítica sobre o sonho relatado e depois faz sua motivante apreciação sobre a tarefa sonhada. Em geral, em todos os demais 28 relatos ele faz da interpretação dasein o adorno da implacável crítica sobre a psicanálise.

            Fato compreensível para um ex-discípulo de Freud que concordava com a importância do ouvir a si mesmo, mas que discordava da visão de natureza humana do mestre. Interessado pelas idéias de Jung, no que diz respeito à posição frente a frente com o paciente, tornou-se divergente pela explicação dos sonhos segundo os arquétipos. Boss sentiu em Heidegger a afetividade que os tornariam grandes amigos e a afinidade filosófica suficiente para o desenvolvimento da daseinanálise.

            Merecem atenção os exemplos 3, 5 e 13 pelo enfoque que o autor dá aos sonhos lúcidos que é quando o paciente acorda dentro de um sonho ou quando tem plena consciência que está em um processo do sonhar. Anos depois, em meados de 1985, Stephen Laberge demonstra em seu livro Sonhos Lúcidos, a possibilidade racional e consciente do fenômeno. Ele enfatiza que “o sonho lúcido tem um potencial considerável na promoção do crescimento e do desenvolvimento pessoais, no aumento da autoconfiança e na melhoria da saúde mental e física, além de facilitar a resolução de problemas de criatividade e ajudar a progredir no caminho do autocontrole.”

            Além da acolhedora compreensão sobre o relato 7, no qual a interpretação restitui o estado esmagador que um processo analítico forçado pode provocar em um paciente (pp. 83-84). Relembra Freud e Wilhelm Reich, bem como a análise da resistência em uma citação não diatribe sobre os autores. Boss reforça a conduta ética do analista no que diz respeito ao cuidado frente às tentativas impetuosas do profissional ao libertar a paciente de seu estado de imaturidade e dependência. Continua no relato seguinte (p. 85) falando sobre a irrelevância de da resposta imediata para as perguntas do analista ou acurada ponderação sobre elas, mas revê a importância do aparecimento das questões e da possibilidade de poder mantê-las abertas.

Nos relatos 11 e 12 (pp. 89-97) ele faz uma diferenciação fundamental sobre sonhos aparentemente iguais que devem ser dissociados pela convergência de informações da terapia em andamento. O autor alerta para a possível distração ou amadorismo do analista em classificar sonhos tão somente pela visão estilizada que um assassinato onírico pode adquirir.

            Nos sonhos uma fuga pode representar uma tentativa de resguardar-se ao máximo, em outros casos a cor branca é vista completamente simbolizada pelos próprios aspectos que a cor evidenciam. Medard fala repetidas vezes sobre ater-se aos fatos sonhados sem amplificações ou associações livres. Neste sentido, ele refuta a interpretação psicanalítica sobre as associações desta cor branca com outros elementos da casa, mas ao final da descrição do 16º sonho (p. 106) ele o elogia quanto à descoberta da fala para o tratamento analítico.

            Para se aproximar do paciente são necessárias estratégias e uma delas, como descrita nos sonhos 18 e 21 foi primeiramente enfatizar os aspectos positivos do comportamento onírico para facilitar a ligação terapeuta/paciente e desprover o sentimento de inferioridade e depreciação frente aos outros. Depois ele fala de outro tipo de aproximação que é quando sentimos outras pessoas e reflete que “sentir significa deixar que algo se aproxime” (p.112) mesmo sendo pisoteado por outros estando na forma e lugar de um tapete.

            O autor aproxima-nos de possibilidades de acontecimentos como a dúvida do sonho profético número 20. Sem negar ou confirmar essa possibilidade, ele apresenta o simbolismo da “queima” dos pais do sonhante como a fase de crescimento terapêutico do jovem. Visto antes como imaturo para a idade, ele agora indica estar se aproximando do esperado para sua idade. Fala ainda como é se sentir existindo em um corpo que não é o próprio como nos sonhos 19, 21 e 23 onde os sonhadores se transformaram em tapete, pavão e planta.

            Em pacientes lesionados cerebralmente mostra a importância do sonho para revisitar o medo sentido na quase morte ou na possibilidade do estado vegetativo permanente. Nos sonhos 23 e 24 ele aborda a impossibilidade de intervenção Daseinanalítica dos fenômenos oníricos nas condições psicopatológicas. Em contrapartida no 25º Medard revalidou o conceito no qual a Daseinanálise pode analisar um sonho sem ao menos conhecer o sonhador.
            Nos dois últimos ele avalia sonhos de pacientes esquizofrênicos onde eles se dissolvem por completo. Lembra que este tipo específico é pertinente à patologia, mas enfatiza que não devem existir outras generalizações sobre as experiências oníricas.

            No capítulo III ele apresenta o ser-no-mundo onírico de paciente, no decorrer da terapia Daseinanalítica, em sua concretização ôntica. No primeiro exemplo reflete sobre uma sequência onírica com o tema dentes onde Boss refuta a interpretação psicanalítica e lingüística sobre a temática. Faz uma longa explanação acerca do Dasein sobre o fenômeno experimentado como sendo a deficiência dela em “agarrar” as coisas na vida e esperar que o dentista ou o analista faça isso para ela. Ainda interfere no fato do sonho de perder os dentes como sendo muito diferente quando estamos falando de um garoto de 6 anos que quer e os está perdendo nesta idade e o mesmo sonho por uma mulher adulta. Para ele tal contextualização é essencial.

            Em uma interessante descrição de 9 sonhos de um engenheiro diagnosticado com narcisismo agudo descreve todo o processo analítico com mais de 3 anos no qual o bem sucedido intelectual mostra sua abertura em relação à sua mãe e às mulheres. Nos primeiros sonhos apenas a figura ou menção à figura da mãe o faz fugir, mas depois ele passa a sentir ciúmes dela. Depois de um tempo ele consegue sonhar que está brincando com uma mulher e no último sonho ele relata que estava se declarando para ela.

            A partir do capítulo IV o autor refuta declaradamente a análise dos sonhos feita pelas chamadas psicologias profundas, a psicanálise e as psicodinâmicas. Medard confronta na primeira comparação o uso da associação livre fazendo ligações entre coisas faladas em consultório como por exemplo, quando “para trás” é interpretado como “de trás” e em momento algum Freud aborda o fato da mãe dominar a paciente ainda que em sonho.

            Na comparação seguinte ele critica a pulsão de morte mostrando um paciente que ouviu as duas interpretações, uma feita por psicanalista e outra feita pela Daseinanálise e explica como a primeira não é compreendida nem aceita. Ele infere sobre a ilusão de se pode ter mais lucidez nos sonhos do que quando acordado, ele critica a idéia de que sonhamos com a continuidade do que ocorreu durante o dia. Entretanto realça Freud como o grande inventor da interpretação de sonhos.

            Mais à frente ele faz uma nova interpretação sobre o assunto de perda de dentes ao sonhar e ainda sobre a perda de cabelos. Ambas dizem respeito às perdas e deteriorizações existenciais pelo simples fato das partes não serem isoladas do corpo, sendo assim sem quaisquer exageros.

            Ele ainda critica a interpretação junguiana quando este recorre à mitologia e às prováveis experiências passadas do sonhador para associações sobre outro tema também frequente, as cobras. Devolve aos objetos e animais sonhados o próprio valor e características falando sobre o sangue frio, o caminhar rasteiro e o potencial verdadeiramente letal de uma cobra ao invés de falar de mitos alheios a ele e distantes da responsabilidade pela própria vida.

            No quinto e último capítulo do livro, Boss aborda questões da natureza do sonhar e do estar acordado passando desde a sabedoria chinesa até a corrente filosófica alemã. O autor discute a diferença entre “ter sonhos” e o “estar sonhando” além da injusta comparação dos sonhos e alucinações remetendo às indicações do sonho lúcido falado anteriormente. Neste ponto ele julga a teoria freudiana que segundo ele propôs uma cisão do homem em consciente e inconsciente.

            Finalmente fala sobre o limitado alcance existencial do sonho se comparado com o estar desperto, mas mesmo assim este tem grande importância terapêutica, seja fenomenológica ou através das psicologias profundas. Porque o sonhador se apropria do significado de um fenômeno onírico para elucidar seu viver e sendo assim uma abordagem mais objetiva como a Dasein proporciona compreensões mais apropriadas para o ser-no-mundo.

Resenha do livro: Na noite passada eu sonhei... (1979). Medard Boss, Summus.


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Isabela: designer, estudou psicologia clínica, especialista em tecidos automotivos, trabalha inclusive com análise de tendências de design e comportamento humano. Está morando fora do país, por isso tem coisas interessantes para compartilhar.

3 comentários:

  1. Muito bom! Esperamos mais posts como este.
    Abraços

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  2. Jonas Otávio Bilda13/12/15 08:42

    Meus sinceros parabéns pela excelente resenha! Boss é um pensador arguto, e sua construção teórica é totalmente inversa à Psicologia científica tal qual é ensinada nas instituições. A Daseinsanalyse é uma égide aos psicólogos dispostos a travar longa e difícil contenda contra o cartesianismo da Psicanálise, da Analítica e do Behaviorismo.
    Novamente, minhas alegres congratulações! Excelente!

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    1. Obrigada! Acho o assunto interessante e preciso escrever outros textos sobre observações que relacionam a bioquímica ao sonhar. Um abraço,

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