Na noite passada eu sonhei... (1979). Medard Boss, Summus |
Desde seus
estudos acadêmicos o psiquiatra e psicoterapeuta suíço, Medard Boss (1903-1990)
acreditava que a Medicina e a Psicologia haviam recebido más influências das
teorias cartesianas e newtonianas. Sendo assim, desenvolveu a Daseinanálise publicando
obras fundamentadas na fenomenologia-existencial. Os títulos
foram: The Analysis of Dreams (1957), Psychoanalysis and Daseinsanalysis (1963),
A Psychiatrist Discovers India
(1965), I Dreampt Last Night (1978) e Existential Foundations of Medicine and
Psychology (1979). Em 1994 editou um livro de seu amigo e mentor Heidegger intitulado
Zollikoner Seminare.
Em seu livro Na noite passada eu sonhei... Medard aprofunda
conhecimentos sobre o fenômeno do sonhar. O autor afasta o sonho dos conceitos
de delírios e alucinações enquanto recompõe o ser humano mostrando que o
fenômeno representa, na verdade, o modo de ser da pessoa também na vigília. Sem
ignorar a presença onírica, ele clareia os significados e as referências
trazidas pelo sonhante exemplificando exaustivamente esta condição humana.
O autor inicia
o relato histórico fazendo referência ao precursor nas interpretações psicológicas
dos sonhos, o psicanalista Sigmund Freud. Mentor e inspirador de Medard, Freud
tem o mérito de ter sido o primeiro a valorizar e propor o estudo científico
acerca do assunto, ainda que mantenha o viés simbólico característico da sua terapia
também para a decodificação dos sonhos.
Em seguida, o
autor faz críticas fenomenológicas às interpretações de Freud lamentando sobre
a explicação dos sonhos partirem da premissa de uma “pisque” humana. Comparando
e justificando seu conceito de unidade do ser humano, tanto no sonho quanto na
vigília, contribui para a opinião de Rollo May quando este diz ser possível
conhecer alguém pelos seus sonhos mesmo sem ver a pessoa. Faz também uma
fundamental diferenciação entre sonhar e rememorar notificando as distorções feitas
pela memória e enfatizando a possibilidade de todos poderem sonhar (p. 26-30).
Medard
retém-se na explicação detalhada da condição humana, segundo ele de “um ser
pensante” diferente das demais criaturas vivas e não vivas; os objetos. Elucida
a condição de alteridade experimentada quando o ser humano se vê transformado, no
sonho, em um cachorro para enfatizar a Daseinanálise dos sonhos. Repetidamente
ele compara sua análise às demais linhas existentes na época contrapondo o
arqueologismo simbólico de Freud, os arquétipos jungianos e às vezes o
antropomorfismo de Skinner.
A delonga em
se contrapor às demais linhas da psicologia dificulta a leitura e o
entendimento da daseinanálise, sendo necessária considerável paciência e
espírito investigativo para retirar de cada exemplo de interpretação de sonho
alguns parágrafos de aplicação fenomenológica-existencial. Por diversas vezes
passa a sensação de escrever mais sobre outros autores e interpretações que da
própria daseinanálise.
Boss segue exemplificando
possíveis abordagens dos sonhos de pessoas consideradas sadias. No primeiro
deles reforça que a imagem de alguém conhecido, vista em sonho, deve ser
considerada como presença sentida pelo sonhador enquanto que no segundo sonho contextualiza
a região onde o recruta foi criado para exemplificar a influência da cultura
vivida no comportamento demonstrado no sonho. O terceiro exemplo diferencia claramente
a interpretação do simbólico psicanalítico para o significado que pode ser
atribuído a qualquer dos objetos sonhados como é belissimamente registrado no quarto
exemplo quando a sonhante adentra uma selva. Neste momento Medard refaz toda a
amplitude de significados do que é, de fato, um local selvagem sem os apelos
sexuais; reitera uma crítica à interpretação de Freud sobre um sonho semelhante
descrito nos primeiros parágrafos do livro.
Outros
exemplos mostram como é possível interpretar um sonho de gigante pela própria
natureza do medo que o mesmo pode gerar ou a solidão de estar num mundo onde
ninguém mais existe. Os últimos sonhos apontam a dualidade vivida nos assassinatos
que um recruta comete somente enquanto sonha, mas nunca na vida desperta e no parto
de um filhote de elefante por uma mulher grávida que se percebe no corpo desse
animal dando a luz.
O autor
continua suas considerações nos 28 seguintes sonhos de pessoas consideradas
mentalmente perturbadas traçando os limites do que se pode entender como
“mentes perturbadas”. Recomeça relatando a interferência psicanalítica sobre o
sonho relatado e depois faz sua motivante apreciação sobre a tarefa sonhada. Em
geral, em todos os demais 28 relatos ele faz da interpretação dasein o adorno da
implacável crítica sobre a psicanálise.
Fato compreensível para um ex-discípulo de Freud que
concordava com a importância do ouvir a si mesmo, mas que discordava da visão
de natureza humana do mestre. Interessado pelas idéias de Jung, no que diz
respeito à posição frente a frente com o paciente, tornou-se divergente pela
explicação dos sonhos segundo os arquétipos. Boss sentiu em Heidegger a afetividade
que os tornariam grandes amigos e a afinidade filosófica suficiente para o desenvolvimento
da daseinanálise.
Merecem atenção os exemplos 3, 5 e 13 pelo enfoque que o
autor dá aos sonhos lúcidos que é quando o paciente acorda dentro de um sonho
ou quando tem plena consciência que está em um processo do sonhar. Anos depois,
em meados de 1985, Stephen Laberge demonstra em seu livro Sonhos Lúcidos, a possibilidade racional e consciente do fenômeno.
Ele enfatiza que “o sonho lúcido tem um potencial considerável na promoção do
crescimento e do desenvolvimento pessoais, no aumento da autoconfiança e na
melhoria da saúde mental e física, além de facilitar a resolução de problemas
de criatividade e ajudar a progredir no caminho do autocontrole.”
Além da acolhedora compreensão sobre o relato 7, no qual
a interpretação restitui o estado esmagador que um processo analítico forçado
pode provocar em um paciente (pp. 83-84). Relembra Freud e Wilhelm Reich, bem
como a análise da resistência em uma citação não diatribe sobre os autores. Boss
reforça a conduta ética do analista no que diz respeito ao cuidado frente às
tentativas impetuosas do profissional ao libertar a paciente de seu estado de imaturidade
e dependência. Continua no relato seguinte (p. 85) falando sobre a irrelevância
de da resposta imediata para as perguntas do analista ou acurada ponderação
sobre elas, mas revê a importância do aparecimento das questões e da
possibilidade de poder mantê-las abertas.
Nos relatos 11
e 12 (pp. 89-97) ele faz uma diferenciação fundamental sobre sonhos aparentemente
iguais que devem ser dissociados pela convergência de informações da terapia em
andamento. O autor alerta para a possível distração ou amadorismo do analista
em classificar sonhos tão somente pela visão estilizada que um assassinato onírico
pode adquirir.
Nos sonhos uma fuga pode representar uma tentativa de
resguardar-se ao máximo, em outros casos a cor branca é vista completamente
simbolizada pelos próprios aspectos que a cor evidenciam. Medard fala repetidas
vezes sobre ater-se aos fatos sonhados sem amplificações ou associações livres.
Neste sentido, ele refuta a interpretação psicanalítica sobre as associações
desta cor branca com outros elementos da casa, mas ao final da descrição do 16º
sonho (p. 106) ele o elogia quanto à descoberta da fala para o tratamento
analítico.
Para se aproximar do paciente são necessárias estratégias
e uma delas, como descrita nos sonhos 18 e 21 foi primeiramente enfatizar os
aspectos positivos do comportamento onírico para facilitar a ligação terapeuta/paciente
e desprover o sentimento de inferioridade e depreciação frente aos outros.
Depois ele fala de outro tipo de aproximação que é quando sentimos outras
pessoas e reflete que “sentir significa deixar que algo se aproxime” (p.112)
mesmo sendo pisoteado por outros estando na forma e lugar de um tapete.
O autor aproxima-nos de possibilidades de acontecimentos
como a dúvida do sonho profético número 20. Sem negar ou confirmar essa
possibilidade, ele apresenta o simbolismo da “queima” dos pais do sonhante como
a fase de crescimento terapêutico do jovem. Visto antes como imaturo para a
idade, ele agora indica estar se aproximando do esperado para sua idade. Fala
ainda como é se sentir existindo em um corpo que não é o próprio como nos
sonhos 19, 21 e 23 onde os sonhadores se transformaram em tapete, pavão e
planta.
Em pacientes lesionados cerebralmente mostra a
importância do sonho para revisitar o medo sentido na quase morte ou na
possibilidade do estado vegetativo permanente. Nos sonhos 23 e 24 ele aborda a
impossibilidade de intervenção Daseinanalítica dos fenômenos oníricos nas
condições psicopatológicas. Em contrapartida no 25º Medard revalidou o conceito
no qual a Daseinanálise pode analisar um sonho sem ao menos conhecer o
sonhador.
Nos dois últimos ele avalia sonhos de pacientes
esquizofrênicos onde eles se dissolvem por completo. Lembra que este tipo
específico é pertinente à patologia, mas enfatiza que não devem existir outras
generalizações sobre as experiências oníricas.
No capítulo III ele apresenta o ser-no-mundo onírico de
paciente, no decorrer da terapia Daseinanalítica, em sua concretização ôntica. No
primeiro exemplo reflete sobre uma sequência onírica com o tema dentes onde
Boss refuta a interpretação psicanalítica e lingüística sobre a temática. Faz
uma longa explanação acerca do Dasein sobre o fenômeno experimentado como sendo
a deficiência dela em “agarrar” as coisas na vida e esperar que o dentista ou o
analista faça isso para ela. Ainda interfere no fato do sonho de perder os
dentes como sendo muito diferente quando estamos falando de um garoto de 6 anos
que quer e os está perdendo nesta idade e o mesmo sonho por uma mulher adulta.
Para ele tal contextualização é essencial.
Em uma interessante descrição de 9 sonhos de um
engenheiro diagnosticado com narcisismo agudo descreve todo o processo
analítico com mais de 3 anos no qual o bem sucedido intelectual mostra sua
abertura em relação à sua mãe e às mulheres. Nos primeiros sonhos apenas a
figura ou menção à figura da mãe o faz fugir, mas depois ele passa a sentir
ciúmes dela. Depois de um tempo ele consegue sonhar que está brincando com uma
mulher e no último sonho ele relata que estava se declarando para ela.
A partir do capítulo IV o autor refuta declaradamente a
análise dos sonhos feita pelas chamadas psicologias profundas, a psicanálise e
as psicodinâmicas. Medard confronta na primeira comparação o uso da associação
livre fazendo ligações entre coisas faladas em consultório como por exemplo,
quando “para trás” é interpretado como “de trás” e em momento algum Freud
aborda o fato da mãe dominar a paciente ainda que em sonho.
Na comparação seguinte ele critica a pulsão de morte
mostrando um paciente que ouviu as duas interpretações, uma feita por
psicanalista e outra feita pela Daseinanálise e explica como a primeira não é
compreendida nem aceita. Ele infere sobre a ilusão de se pode ter mais lucidez nos
sonhos do que quando acordado, ele critica a idéia de que sonhamos com a
continuidade do que ocorreu durante o dia. Entretanto realça Freud como o
grande inventor da interpretação de sonhos.
Mais à frente ele faz uma nova interpretação sobre o
assunto de perda de dentes ao sonhar e ainda sobre a perda de cabelos. Ambas
dizem respeito às perdas e deteriorizações existenciais pelo simples fato das
partes não serem isoladas do corpo, sendo assim sem quaisquer exageros.
Ele ainda critica a interpretação junguiana quando este
recorre à mitologia e às prováveis experiências passadas do sonhador para
associações sobre outro tema também frequente, as cobras. Devolve aos objetos e
animais sonhados o próprio valor e características falando sobre o sangue frio,
o caminhar rasteiro e o potencial verdadeiramente letal de uma cobra ao invés
de falar de mitos alheios a ele e distantes da responsabilidade pela própria
vida.
No quinto e último capítulo do livro, Boss aborda
questões da natureza do sonhar e do estar acordado passando desde a sabedoria
chinesa até a corrente filosófica alemã. O autor discute a diferença entre “ter
sonhos” e o “estar sonhando” além da injusta comparação dos sonhos e
alucinações remetendo às indicações do sonho lúcido falado anteriormente. Neste
ponto ele julga a teoria freudiana que segundo ele propôs uma cisão do homem em
consciente e inconsciente.
Finalmente fala sobre o limitado alcance existencial do
sonho se comparado com o estar desperto, mas mesmo assim este tem grande
importância terapêutica, seja fenomenológica ou através das psicologias
profundas. Porque o sonhador se apropria do significado de um fenômeno onírico
para elucidar seu viver e sendo assim uma abordagem mais objetiva como a Dasein
proporciona compreensões mais apropriadas para o ser-no-mundo.
Resenha do livro: Na noite passada eu sonhei... (1979). Medard Boss, Summus.
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Isabela: designer, estudou psicologia clínica, especialista em tecidos automotivos, trabalha inclusive com análise de tendências de design e comportamento humano. Está morando fora do país, por isso tem coisas interessantes para compartilhar.
Muito bom! Esperamos mais posts como este.
ResponderExcluirAbraços
Meus sinceros parabéns pela excelente resenha! Boss é um pensador arguto, e sua construção teórica é totalmente inversa à Psicologia científica tal qual é ensinada nas instituições. A Daseinsanalyse é uma égide aos psicólogos dispostos a travar longa e difícil contenda contra o cartesianismo da Psicanálise, da Analítica e do Behaviorismo.
ResponderExcluirNovamente, minhas alegres congratulações! Excelente!
Obrigada! Acho o assunto interessante e preciso escrever outros textos sobre observações que relacionam a bioquímica ao sonhar. Um abraço,
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