dezembro 27, 2013

A turma da Zona Norte ou Oeste

Chaleira assistindo a aula sobre bule.

Ana Maria aprendeu as primeiras letras nas histórias em quadrinhos. Inventava diálogos e ia seguindo com os dedinhos os balões das falas dos desenhos.

Tempos depois, mesmo lendo de tudo um pouco no seu ofício de professora, continuava a apreciar este lazer: comprar, colecionar, e principalmente se deliciar com a ingenuidade dos enredos. Nem se importava de ouvir o que diziam deste tipo de leitura:

_Não é boa. Não estimula a imaginação. Reduz conteúdos. A linguagem é pobre.

Ana e algumas professoras das primeiras séries, de vez em quando recorriam ao recurso dos gibis levando uma pilha para os alunos lerem ao término de suas tarefas, aguardando a sala toda finalizar para começarem juntos outra atividade escolar.

A sua turma, não tendo preferência por herói deste tipo de história lia de bom grado, o que a professora trazia de casa. Ela por sua vez, carregava pra baixo e pra cima sua preciosa coleção no empréstimo às crianças que não tinham recursos financeiros para comprar, tendo a própria mestra dificuldade em adquirir gibis novos.

Quando o bullying foi identificado e classificado como maléfico naquelas paragens, tornando obrigatória a prevenção e alerta de toda comunidade escolar, fez-se necessário explicar aos alunos o que era ou não considerada sua prática. Foi um pouco difícil, pois a própria palavra estrangeira não lhes era familiar, e nem sugeria algo reprovável.

Na sala das professoras, no intervalo do cafezinho, uma profissional mais antiga dizia:

_Na época em que me assentava nestes mesmos bancos escolares, "chaleira e chaleirar" serviram para denominar o bajulador, o ato da lisonja excessiva, ou "puxa-saco", como é mais conhecido hoje. Surgindo atualmente este bully para designar quem rotula o outro de nome depreciativo pensei no inocente bule de café, tão próximo à chaleira do chá, com significado tão oposto.

_Logo o bule, tão esbelto e imponenete em seus nobres materiais, a frequentar as mesas cobertas de florias toalhas... - ponderou outra educadora.

_E a chaleira, tão arredondada, fabricada em alumínio semelhante ao de panela, assídua na trempe do fogão, como pode representar o "baba ovo"? - completou a seguinte.

_Até mesmo a panela, serviçal e humilde, tem sentido figurativo para aqueles que excluem alguém de seu convívio, julgando-se superiores. Coitada. Tão útil a todas as categorias e classes, servir para um significado nada enobrecedor... - lembrou a próxima professora.

_Será que não estamos sendo preconceituosas ao falar da esbelteza do bule de café, da ausência de cintura na forma redonda da chaleira? - arriscou Ana Maria.

Seguindo cada qual à sua sala de aula, aonde os alunos chegavam suados, agitados ou cansados com as brincadeiras do recreio, teve a ideia de distribuir as revistinhas para a "volta à calma" e a concentração. Dali a pouco um menino fez a pergunta:

_Professora, este personagem aqui não tem nome. Tem apelido depreciativo.

_Toda a turma o chama assim.

bullying?

_ Na época não era. - respondeu ela, completando: quem sabe nós conseguimos listar na lousa, personagens dos nossos gibis e identificarmos se teriam apelidos hoje taxados de prática indesejável de bullying?

É... parecia que sim.

Em torno da atividade, outros exercícios surgiram.

_Se pudéssemos trocar esses cognomes, quais poderíamos sugerir?

_Por que as pessoas põem apelidos feios umas nas outras? Em que ocasiões? É sempre assim? Será que se pode evitar, que de xingamento se passe a agressões físicas? Que atitude deve tomar um estudante ao sofrer bullying pelos colegas?

E assim, as revistinhas ajudando alunos a entender um conceito abstrato e de nome inglês mais facilmente, foram momentaneamente elevadas a recurso didático na aquisição de um comportamento social adequado.

Bons resultados podem depender da maneira que se fala ou se conduz uma questão. Tanto as professoras daquela escola, quanto os alunos estavam abertos a descobrir isto.

Na busca do significado das palavras: bully, encontraram o comportamento agressivo. A intimidação. Bule: de origem malaia designa "frasquinho de louça, estreito, de asa e bico utilizado para servir líquidos quentes à mesa". Chaleira e chaleirar, no sentido figurativo, usado para lisonjeador e lisonjear; bajulador e bajular. Panela por sua vez, era só o utensílio de cozer alimentos as fogão, e o seu diminutivo "panelinha"... ah o seu diminutivo...

_Vindo a significar um grupo restrito de pessoas que não gosta de se misturar, deve ter gerado o bully, deixando de lado "a chaleira chaleirando o chaleirador".

Se, começou na cozinha será difícil apurar, então fica a investigação para a próxima vez.



Atendendo a pedidos, uma breve explicação sobre a natureza do título. Especialmente para quem tem menos de 40 ou não leu esses quadrinhos.


"A turma da zona Norte rivalizava com os personagens Bolinha, Luluzinha, Carequinha das HQ (história em quadrinhos) que eu lia na infância. Então usei como referência para a questão do que hoje é denominado bullying. O que parecia uma brincadeira de apelidar, agora pode demonstrar intolerância. Então, não importa se a turma é da zona Norte ou de outro ponto cardeal. Não pode rotular preconceituosamente."



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Elisabeth Carvalho Santos desde alfabetizada lê tudo que aparece à sua volta. Depois de aposentada professora (não de Português) resolveu escrever. Colabora com o jornalzinho da família, participa de concurso cultural e coleciona seus textos para publicar oportunamente. Os assuntos brotam de suas observações, das conversas com amigos e são temperados com pitadas de imaginação e bom humor. Costuma afirmar que "escrever é um trabalho prazeroso e/ou um lazer trabalhoso que todo alfabetizado deveria experimentar algum dia".

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