abril 18, 2014

Quem conta um conto...

Menina tecendo, quadro naif de Elisabeth.
_ Aumenta um ponto quem conta um conto.

Dizia minha avó para não acusar diretamente de mentiroso quem estava ali à sua frente, contando o conto.

A afirmação seria equivalente a:

 _Cada qual tem seu ponto de vista e sempre discorrerá melhor sobre esse ou aquele assunto se estava presente na ocorrência do fato.

Então o tal “ponto” aumentado, não passaria na verdade de um dado que o personagem conhecia anteriormente, mas o colega de prosa desconhecia até o momento. O ponto aumentava o conto. Só isso.

Aliás, esse dito popular, no tempo da minha avó poderia também ter outra interpretação se o referido “conto” fosse “conto de réis”. 

_ Já pensou? Alguém poderia estar contando as notas de um maço de dinheiro e enriquecendo à medida que contasse!

_ Pouco lógico amigo a não ser que se tratasse de um “conto da carochinha” onde tudo é possível e a fantasia reina.

_ É.

_ Então daqui pra frente fica assim: Você conta o conto. Eu aumento um ponto. Certo?

_ Certíssimo!

Antes que a conversa mudasse de rumo seria bom começar a história.

_Uma costureira certa vez, precisando muito de uma grana extra, ofereceu-se para tecer o manto de um rei muito gordo, alegre e bonachão. Como ela era velha conhecida do rei, por ter sido sua ama de leite, ele aceitou sua exagerada exigência de ser remunerada por cada ponto dado na costura.

_ Não gostei do início da história! – interrompeu o inconformado parceiro literário- Conforme o combinado, eu vou aumentar o ponto, você vai apenas contar o conto.

_ Qual o problema Mané? Nem comecei direito a narrativa!

_ Quer me passar a perna é? Ta muito na cara que essa costureira há de querer aumentar uns pontos para receber mais dinheiro por seus serviços. Já falei, aqui quem vai aumentar um ponto sou eu, ninguém mais.

_ Ta bem, ta bem. Vou maneirar. 

E continuou a narrativa: Tendo que visitar um ponto geográfico do seu reinado, donde veio um arauto anunciando pontos de divergências entre súditos, o rei contratou alguém para contar os pontos da costura em seu magnífico e novíssimo manto. A pessoa seria como um relógio de ponto na oficina de costura a vigiar a costureira. Aconteceu que em determinado ponto da viagem, provando um doce numa estalagem a beira da estrada, o rei ficou cheio de pontos vermelhos na pele. Talvez a doceira não tivesse acertado o ponto do doce fazendo com que a guloseima guardada deteriorasse e provocasse urticária numa pessoa sensível demais. Tinha de ser o monarca! - que então permaneceu ali parado contando pontos de um jogo de cartas que só haveria de acabar quando sua alergia se fosse também.

_ Não estou gostando...

_ Calma que a coisa melhora. Ainda não saí do conto como pode ver.

“Ao ponto dado, os cavalos da carruagem arrancaram para compensar o tempo perdido, de volta à estrada. O cocheiro fazia sua parte estalando no ar o chicote, aumentando pontos no conceito de eficiência que o soberano tinha dele. Um orgulho!

Chegando ao destino, se depararam com uma cena teatral onde só faltava mesmo o cara do ponto que lembra aos atores suas falas. Informantes da corte expuseram ao rei seus pontos de interrogação, ou dúvidas sobre possível conspiração. Era ponto de honra desmantelar o que houvesse de ameaça ao reinado. O ponto de apoio daquele que pretendia tomar o poder era a população inconformada com a carestia de vida. Ponto de honra para o sucessor de Dom Ponto e Vírgula era dar um ponto final na revolta dos descontentes.

_Estou achando que você colega, está indo longe demais. Cadê a costureira? Cadê o inspetor do serviço dela? E onde foi parar...

_ Ta bom, ta bom. Já entendi que tenho de voltar ao ponto culminante do conflito, de olho no ponto cego para não atropelar os fatos, de volta ao ponto central da narrativa, né?

_ To vendo a hora de não sobrar conto para eu aumentar ponto, isso sim espertinho!

_ Juro que maneiro os pontos e sigo o ponto cardeal norte para não desnortear o amigo.

A comitiva real, conseguindo ir direto ao ponto de convergência de interesses escusos de quem alardeou uma falsa conspiração, não chegou a ponto de bala nem de ebulição: voltou ao ponto de partida feliz da vida!

_Credo! É ponto final?

_Claro que não. Entregarei os pontos se você conseguir descrever o final do conto sem mais 

nenhum ponto. 

_ Fácil assim? Lá vou eu:

O rei retornou e foi pagar o manto tecido pela costureira. Esta por sua vez, aguardando sua volta foi tecendo, tecendo e tecendo. O preço valia o reino. O rei não quis honrar o compromisso. Para não ter que sair nu pela segunda vez numa história, pegou uma linha e se enrolou todo.

_ Parabéns colega, por ter conseguido. A sutileza dos pontos que formam a linha com que se vestiu ou enrolou-se o rei o salvaram. Dividirei meu prêmio com você!

_Não está curioso para saber que fim levou o vigilante da costura do manto real?

_ Imagino, imagino... Para você não ter mencionado, o cara deve ter se machucado com a tesoura do atelier e foi ao médico levar uns pontos no ferimento.

_ É!

E assim terminou o conto

Quem não gostou

Que conte outro!



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Elisabeth Carvalho Santos desde alfabetizada lê tudo que aparece à sua volta. Depois de aposentada professora (não de Português) resolveu escrever. Colabora com o jornalzinho da família, participa de concurso cultural e coleciona seus textos para publicar oportunamente. Os assuntos brotam de suas observações, das conversas com amigos e são temperados com pitadas de imaginação e bom humor. Costuma afirmar que "escrever é um trabalho prazeroso e/ou um lazer trabalhoso que todo alfabetizado deveria experimentar algum dia".

Um comentário:

  1. Quando escrevi este conto achei que deveria concorrer no "talentos da maturidade" que acontece bienalmente. Mandei e ele está lá exposto há mais de um ano. Nada ganhei a não ser o exercício de dar asas à imaginação de olho no dicionário. Assim mesmo gostei do resultado. Beth.

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