Por Elisabeth Santos
O que se chamava caduquice, e vinha com a terceira
idade, hoje tem nome de Alzheimer. Tudo bem que os sintomas foram
cientificamente esmiuçados, as causas investigadas, os doentes observados
devidamente nas fases que iam surgindo.
A cura, tanto daquela caduquice quanto do que vemos agora,
com muitas pesquisas realizadas, ainda não está ao alcance dos pacientes por
tratar-se de uma doença degenerativa; de desgaste mesmo, ou do envelhecimento,
como preferirmos denominá-la enfim.
Conversando com pessoas idosas recém-conhecidas, por
não estarem no meu âmbito familiar, demorei a distinguir as que mereciam mais
atenção nos lembretes de atividades bem simples, que dependiam da memória
recente. Dando sequência a uma conversa normal, aparentavam estar bem. Dali a
pouco, do nada, surgiam perguntas assim:
_ Quem é mesmo você? Mora aqui? O que faz?
E às minhas indagações rotineiras de eventual
cuidadora delas:
_ Quer almoçar? Tomar um banho? Dar uma volta lá no
jardim? Respostas convictas e semelhantes:
_ Já fiz isto hoje!
Se assim continuássemos, não chegaríamos a lugar
algum. Resolvi fazer uma modificação na abordagem.
Minha estratégia, para atingir os objetivos
imprescindíveis, agora era:
_ Está na hora do lanche, vamos lá!
Tomava eu mesma a iniciativa, colocando Don’Ana na
postura de seguir minha ideia do que era necessário fazer naquele momento. Só
assim consegui não deixar para trás nenhum dos seus saudáveis hábitos diários.
E minha amiga pegava as agulhas de tricô e tecia...
para dali a pouco desmanchar duas ou três carreiras e nunca terminar a peça
começada. Tricotava, desmanchava uma parte, para em seguida refazê-la, sem
perceber que não avançava no rendimento do trabalho assim feito e refeito
incansavelmente. Ou será que percebia?
Eu não queria que ela fizesse sempre a mesma coisa,
estando numa única postura corporal, assentada diante de um aparelho de TV
ligado, então insistia:
_ Don’Ana, por
que desfez um trabalho tão lindo? - e ouvia a mesma resposta:
_ Tinha um erro.
Precisava corrigí-lo!
Aos meus olhos, nada de erro.
Seria perfeccionismo ou uma lembrança dos tempos de
aprendizado de trabalhos manuais, quando a suposta exigência seria da mestra
que permaneceu inesquecível? Então seria assim: tudo que foi muito repetitivo
em algum período daquela vida estaria memorizado “ad eternum”? (- Que ruim esse
tal de alemão registrado Alzheimer - eu não deixava de ironizar interiormente.)
E assim resolvi que ia trocando a cor da lã, para que ela pudesse fazer alguma
observação. Às vezes sim... às vezes não... Don’Ana pedia o seu tricô original
conseguindo distinguí-lo em meio de tantos outros novelos e agulhas de
diferentes espessuras e tonalidades.
Os primeiros dias do inverno passando, meu estágio
quase terminando...
As conversas em momentos de lucidez eram bem
interessantes:
_ "Tive uma infância feliz na fazenda de minha família
em Engenho Novo, estado de Minas Gerais. Tenho saudades daqueles tempos. Meus irmãos e
eu brincávamos em meio de tanta vegetação, inventávamos brinquedos em horários
não escolares, mas ajudávamos também. Depois do café da manhã, papai saia para
a lavoura e eu o seguia para ajudar. Se ele fazia a cova para os grãos eu a
fechava com o pé. Se ele colhia eu auxiliava carregando o que dava conta.
Aos treze anos tive a incumbência de pajear minha irmã
mais nova, porém ela morreu cedo me deixando pesarosa e só. Em meus pensamentos
procurava, sem achar, uma causa para a morte precoce da maninha. Sem ter
alcance para um raciocínio lógico satisfatório, ouvindo dos mais velhos, que
ela se foi pela vontade de Deus, sem compreender porquê Ele a tirou de mim, acabei
por sentir-me culpada de alguma negligência no cuidado com a criança.
Aos dezesseis anos apaixonei e fiquei noiva de um
rapaz bom e trabalhador. Só não tive coragem suficiente para o casamento.
Desisti de última hora, achando que não conseguiria, principalmente, ser boa
mãe. Escolhi a carreira de professora, mas estando com emprego fixo num Colégio,
fui convidada a trabalhar na tesouraria. Ali fiquei até a aposentadoria por meu
próprio gosto e mais uns dez anos por insistência da diretoria. Fui ensinando
meu serviço, passando as responsabilidades para funcionários mais jovens, pois
percebi que “um certo alemão” começou a se declarar demente por mim,
interferindo nas minhas lembranças recentes, atrapalhando meu dia a dia no
serviço. Resolvi aposentar-me de vez, consciente de já poder parar, antes de
comprometer negativamente a tarefa que desempenhei com tanta seriedade,
dedicação e amor."
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Em outros momentos, minha amiga coloca no bolso do
casaco de frio a caixinha do medicamento diário. Tricota mais duas carreiras de
ponto Segredo e a desmanchar as três últimas carreiras lembra-se que ganhou um
presente. Enfia a mão no bolso e pegando a caixinha agradece-me assim:
_ Gostei muito deste lindo presente que você me deu,
viu?
E guarda-o no mesmo bolso.
Hoje sim tive a certeza que Don’Ana não poderá ficar
sem alguém responsável por ela.
Inicio uma sessão musical de tempos colegiais,
composta de cantoria de várias vozes e observo olhinhos brilhando ao meu redor
até que uma lágrima caia.
Esqueça tudo o que seu estudo acadêmico ensinou-lhe
para chorar também.
Elisabeth Carvalho Santos desde alfabetizada lê tudo que aparece à sua volta. Depois de aposentada professora (não de Português) resolveu escrever. Colabora com o jornalzinho da família, participa de concurso cultural e coleciona seus textos para publicar oportunamente. Os assuntos brotam de suas observações, das conversas com amigos e são temperados com pitadas de imaginação e bom humor. Costuma afirmar que "escrever é um trabalho prazeroso e/ou um lazer trabalhoso que todo alfabetizado deveria experimentar algum dia".