agosto 03, 2018

Esqueça

Por Elisabeth Santos


© Nejron


O que se chamava caduquice, e vinha com a terceira idade, hoje tem nome de Alzheimer. Tudo bem que os sintomas foram cientificamente esmiuçados, as causas investigadas, os doentes observados devidamente nas fases que iam surgindo.

A cura, tanto daquela caduquice quanto do que vemos agora, com muitas pesquisas realizadas, ainda não está ao alcance dos pacientes por tratar-se de uma doença degenerativa; de desgaste mesmo, ou do envelhecimento, como preferirmos denominá-la enfim.

Conversando com pessoas idosas recém-conhecidas, por não estarem no meu âmbito familiar, demorei a distinguir as que mereciam mais atenção nos lembretes de atividades bem simples, que dependiam da memória recente. Dando sequência a uma conversa normal, aparentavam estar bem. Dali a pouco, do nada, surgiam perguntas assim:

_ Quem é mesmo você? Mora aqui? O que faz?

E às minhas indagações rotineiras de eventual cuidadora delas:

_ Quer almoçar? Tomar um banho? Dar uma volta lá no jardim? Respostas convictas e semelhantes:

_ Já fiz isto hoje!

Se assim continuássemos, não chegaríamos a lugar algum. Resolvi fazer uma modificação na abordagem.

Minha estratégia, para atingir os objetivos imprescindíveis, agora era:

_ Está na hora do lanche, vamos lá!

Tomava eu mesma a iniciativa, colocando Don’Ana na postura de seguir minha ideia do que era necessário fazer naquele momento. Só assim consegui não deixar para trás nenhum dos seus saudáveis hábitos diários.

E minha amiga pegava as agulhas de tricô e tecia... para dali a pouco desmanchar duas ou três carreiras e nunca terminar a peça começada. Tricotava, desmanchava uma parte, para em seguida refazê-la, sem perceber que não avançava no rendimento do trabalho assim feito e refeito incansavelmente. Ou será que percebia?

Eu não queria que ela fizesse sempre a mesma coisa, estando numa única postura corporal, assentada diante de um aparelho de TV ligado, então insistia:

_ Don’Ana, por que desfez um trabalho tão lindo? - e ouvia a mesma resposta:

_ Tinha um erro. Precisava corrigí-lo!

Aos meus olhos, nada de erro.

Seria perfeccionismo ou uma lembrança dos tempos de aprendizado de trabalhos manuais, quando a suposta exigência seria da mestra que permaneceu inesquecível? Então seria assim: tudo que foi muito repetitivo em algum período daquela vida estaria memorizado “ad eternum”? (- Que ruim esse tal de alemão registrado Alzheimer - eu não deixava de ironizar interiormente.) E assim resolvi que ia trocando a cor da lã, para que ela pudesse fazer alguma observação. Às vezes sim... às vezes não... Don’Ana pedia o seu tricô original conseguindo distinguí-lo em meio de tantos outros novelos e agulhas de diferentes espessuras e tonalidades.

Os primeiros dias do inverno passando, meu estágio quase terminando...

As conversas em momentos de lucidez eram bem interessantes:

_ "Tive uma infância feliz na fazenda de minha família em Engenho Novo, estado de Minas Gerais. Tenho saudades daqueles tempos. Meus irmãos e eu brincávamos em meio de tanta vegetação, inventávamos brinquedos em horários não escolares, mas ajudávamos também. Depois do café da manhã, papai saia para a lavoura e eu o seguia para ajudar. Se ele fazia a cova para os grãos eu a fechava com o pé. Se ele colhia eu auxiliava carregando o que dava conta.

Aos treze anos tive a incumbência de pajear minha irmã mais nova, porém ela morreu cedo me deixando pesarosa e só. Em meus pensamentos procurava, sem achar, uma causa para a morte precoce da maninha. Sem ter alcance para um raciocínio lógico satisfatório, ouvindo dos mais velhos, que ela se foi pela vontade de Deus, sem compreender porquê Ele a tirou de mim, acabei por sentir-me culpada de alguma negligência no cuidado com a criança.

Aos dezesseis anos apaixonei e fiquei noiva de um rapaz bom e trabalhador. Só não tive coragem suficiente para o casamento. Desisti de última hora, achando que não conseguiria, principalmente, ser boa mãe. Escolhi a carreira de professora, mas estando com emprego fixo num Colégio, fui convidada a trabalhar na tesouraria. Ali fiquei até a aposentadoria por meu próprio gosto e mais uns dez anos por insistência da diretoria. Fui ensinando meu serviço, passando as responsabilidades para funcionários mais jovens, pois percebi que “um certo alemão” começou a se declarar demente por mim, interferindo nas minhas lembranças recentes, atrapalhando meu dia a dia no serviço. Resolvi aposentar-me de vez, consciente de já poder parar, antes de comprometer negativamente a tarefa que desempenhei com tanta seriedade, dedicação e amor."

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Em outros momentos, minha amiga coloca no bolso do casaco de frio a caixinha do medicamento diário. Tricota mais duas carreiras de ponto Segredo e a desmanchar as três últimas carreiras lembra-se que ganhou um presente. Enfia a mão no bolso e pegando a caixinha agradece-me assim:

_ Gostei muito deste lindo presente que você me deu, viu?

E guarda-o no mesmo bolso.

Hoje sim tive a certeza que Don’Ana não poderá ficar sem alguém responsável por ela.

Inicio uma sessão musical de tempos colegiais, composta de cantoria de várias vozes e observo olhinhos brilhando ao meu redor até que uma lágrima caia.

Esqueça tudo o que seu estudo acadêmico ensinou-lhe para chorar também.



Elisabeth Carvalho Santos desde alfabetizada lê tudo que aparece à sua volta. Depois de aposentada professora (não de Português) resolveu escrever. Colabora com o jornalzinho da família, participa de concurso cultural e coleciona seus textos para publicar oportunamente. Os assuntos brotam de suas observações, das conversas com amigos e são temperados com pitadas de imaginação e bom humor. Costuma afirmar que "escrever é um trabalho prazeroso e/ou um lazer trabalhoso que todo alfabetizado deveria experimentar algum dia".

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