outubro 23, 2020

Do lado de lá

Por Elisabeth Santos


Tratava-se de uma família numerosa e cheia de amigos, agregados, e também de amigos dos aparentados. Quando se reuniam, enchiam uma Pousada e ainda sobrava gente para lotar o pátio interno e o calçamento à entrada da porta principal. Ainda assim iam chegando casais empencados de filhos, e netos. Todos acostumados com o ambiente, iam se ajeitando, se servindo, tomando seus lugares. Não estava estipulada hierarquia, pelo respeito à tradição prevalecia a lei “quem chega primeiro escolhe onde quer ficar”. Os grupos iam desenrolando assuntos sérios, e também os divertidos. Quanto a estes, se fossem analisados à luz das normas estabelecidas nos últimos anos, eram diálogos entremeados de anedotas preconceituosas. Os que bebiam bebidas alcoólicas riam às bandeiras despregadas. Os que bebiam sucos de frutas, saiam quando o clima pesava, davam uma volta por ali, se apresentavam aos novatos da turma, e retornavam ao grupo de origem.

As crianças se misturavam de tal forma, correndo de lá para cá, que algumas vezes lhes chamavam a atenção, e não eram seus pais! Depois se desculpavam: - Olhei rapidamente e achei que eram os meus filhos correndo risco de se machucarem. Essa criançada se parece muito. O autor da censura, constrangido, se explicava pelo engano.

 Tudo terminava bem.

Ali, a prosa sempre podada era a de se gabarem de suas façanhas. Afinal de contas, todos sem exceção tiveram, em algum dia da vida, local mais propício para se enaltecerem. Uns foram pescadores de grandes peixes, outros plantadores de altas árvores, além dos que: criaram animais de crescimento fora do comum, construíram de pinguelas a pontes ou se tornaram louvados e glorificados por feitos humanitários.

Do lado de lá, donde vieram tais informações, ninguém desejava ser mais ou maior que o outro. Local da paz e do bem. As desavenças ou simples divergências de opiniões não viravam brigas de egos.

Eis que surge a pandemia e deu-se início a chegada ao grupo “paz e amor”, muitos revoltados querendo descobrir, inclusive, os responsáveis pelos transtornos do lado de cá.

Estes especulavam, levantavam questões de difícil raciocínio, lançavam hipóteses, julgavam com os dados que tinham, apontavam culpados sem conseguir provar a origem verdadeira da pandemia. Talvez não tivessem conseguido até então determinar “a origem” por não ter sido uma causa única. Misturando-se aos “do lado de lá”, quem sabe conseguiriam?

 Se iria adiantar de alguma coisa ninguém poderia afirmar. Tinham fé. Se estaria, ou não, sendo tarde demais... desconheciam também.

Apostando na ideia de evitar outros pecados dali pra frente, entabularam diálogos sem fim. Se, ainda não chegaram a um consenso decerto chegarão ao desfilar das aguardadas próximas gerações.

Lamentavelmente muitas vidas se foram, mas o nosso mundo ainda não acabou. Pode ser que ainda haja tempo. Palavras da turma do lado de lá, esperançosa de que os chegantes absorvam a paz e o amor, depois de muita discussão sobre o hipotético questionamento: - “Quem veio primeiro: o ovo ou a galinha?”


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Elisabeth Carvalho Santos desde alfabetizada lê tudo que aparece à sua volta. Depois de aposentada professora resolveu escrever e já publicou dois livros. Os assuntos brotam de suas observações, das conversas com amigos e são temperados com pitadas de imaginação e bom humor. Costuma afirmar que "escrever é um trabalho prazeroso e/ou um lazer trabalhoso que todo alfabetizado deveria experimentar algum dia"

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