março 16, 2018

Imagem II

Por Elisabeth Santos




Meu pai ouvia a Hora do Brasil toda noite a partir das dezenove horas com o ouvido encostado no rádio. Depois ainda seguia o Repórter Esso Alô Alô mantendo-se bem informado de atos políticos e notícias em geral, todas do interesse do seu trabalho.

Eram os momentos em que seus filhos tinham de ficar quietinhos. Caso os menores não quisessem obedecer à lei do silêncio papai ficava muito bravo, pois não conseguia distinguir os sons que saiam daquela caixa preta, cuja dianteira assemelhava-se a um caminhão e seus faróis; cuja parte traseira de papelão bem grosso, os orifícios transpiratórios, deixavam escapar luz das válvulas e um cheirinho de plástico esquentado. De vez em quando, o ouvinte dava uns tapinhas na lateral do aparelho na tentativa de livrá-lo de alguma indesejável interferência.

Ao centro da mesa de dezessete lugares, o que significaria uma tigela com água ao centro? Dos janelões abertos vinham voando besouros atraídos pela luz da lâmpada. Fascinados pelo reflexo dela n’água... caiam ali onde se punham a nadar sem conseguir sair. Se algum ia atingindo a borda da vasilha recebia um peteleco e voltava à competição natatória. Torcedores daquela competição, com olhares inocentes, queriam a vitória do verde, do ocre, do marrom ou do pretão.

Quem ali se encontrava, com caderno de dever de casa aberto, reclamava de eventuais respingos. 

Mamãe, de ouvidos atentos a tudo que acontecia naquela sala, tinha mãos e olhos em seu bordado, na combinação de cores das linhas, nos detalhes do risco a seguir, e em sua cesta de costura. Este era o momento dela repousar as pernas por recomendação médica.

O ritual do horário de dormir tinha início às oito badaladas do relógio. Mamãe abria a cristaleira, retirava a lata de guloseimas e dava uma para cada um. Em seguida era a escovação dos dentes e cama! Havia um revezamento na contação de histórias pelo papai, quando não estava viajando, e da reza do terço pela mamãe, quando o sono estava demorando a chegar para a maioria.

Em nossas lembranças infantis, podíamos escolher em que terço haveríamos de rezar. Estes se embaraçavam num porta - joias, e eram de diferentes materiais, cores e comprimentos. Vindos de lugares diversos, oferecidos por pessoas queridas, cada qual trazia lembranças...

Só sei que o terço feito de caroços de azeitonas ninguém escolhia por ser o maior e passar a ideia da reza ser mais demorada.


Para ler a primeira parte desta história, clique aqui.





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Elisabeth Carvalho Santos desde alfabetizada lê tudo que aparece à sua volta. Depois de aposentada professora (não de Português) resolveu escrever. Colabora com o jornalzinho da família, participa de concurso cultural e coleciona seus textos para publicar oportunamente. Os assuntos brotam de suas observações, das conversas com amigos e são temperados com pitadas de imaginação e bom humor. Costuma afirmar que "escrever é um trabalho prazeroso e/ou um lazer trabalhoso que todo alfabetizado deveria experimentar algum dia".



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