abril 10, 2020

Pressentimentos III


Por Elisabeth Santos


Realmente sinto nem poder escrever sobre pressentimentos, que eles estão à minha porta.

Ainda bem que nem sempre são fatos tristes. Ontem tive de largar a escrita no meu computador por duas vezes: a primeira relatei ao final do texto II. Estive com meu marido a acudir, e levar ao Pronto Atendimento Municipal uma criança com hipoglicemia.

A segunda: estive a ver uma tourada bem à porta de nossa residência na cidade. Somos vizinhos de uma fabricação artesanal de carro puxado por bois, localizada no quintal mais próximo. Moramos na última rua central, confrontando com um pasto de montarias equinas, e bois. Nossa vida nos últimos vinte anos tem sido alegre, animada ou surpreendente como a que ocorreu ontem. Não podemos reclamar de pacatez. Sempre aparece algo novo: “carreata” de carros de bois de diversas localidades em ocasiões festivas; saídas de cavalgadas a lugares sagrados; comemorações do dia dos Santos Reis; criança aprendendo a montar numa égua das mansas; jovens saindo a passeio em grande estilo, cada qual em seu cavalo, seja puro sangue, um quarto de pureza, ou pangaré. Ninguém exibe preconceito: vão enturmados, seguros, cientes de suas responsabilidades num passeio campestre repleto de aventuras, imagino eu daqui do computador com câmera externa, acompanhando e inventando histórias.

Como ia eu narrando... ouvi um mugido e corri a pegar o celular para fotografar. Não deu tempo. O lance foi muito rápido. Achei que ia ver na tela de circuito externo, mas estava apagada pela tempestade noturna que interrompeu a energia elétrica sem que eu percebesse. Estava dormindo a sono solto. Então restou-me ouvir a sequência do ocorrido, ver a movimentada cena tal qual tourada de Madri de filme com Sarita Montiel, e gravar o final do “meu” relato.

Não estou enrolando. Tento fazer uma narrativa lógica acompanhando o que ouvi antes, e vi após o: - Muuuu...

Ouvi um caminhão desligando o motor. Fato comum. O mugido veio em seguida. Fiquei alerta!

- ‘Pera aí! Tem gado no pedaço. Deve estar em frente ao meu portão. Verei o que ele quer. Nooossaaa! O boi não quer descer da carreta!” - Pensei com meus botões.

O transportado teimava em não sair porque desconfiou o que estaria a acontecer do lado de lá daquela porteirinha. Lembrou de seus colegas que iam dar uma volta e não voltavam. Mudavam-se para fora do país em forma de hambúrguer. Aquele boi não sabia que o esperava um pasto espaçoso e verdinho, colegas cornos mansos, atos heroicos dignos de aplausos quando dos desfiles de carros de boi pelo centro da cidade!

Foi por isso que ao descer da condução que o trouxe ali... disparou ladeira abaixo pela extensão da rua comprida, o encarregado do transporte ligeiro atrás dele a pé, o ajudante aguardando-o pronto para jogar o laço.

Dizem que na descida todo santo ajuda, então o boi escapou de verdade. O encarregado entrou na carreta, ligou apressadamente o motor e foi no rastro do fujão. Dali a pouco outro alvoroço bem à porta da minha casa. Era todo mundo voltando.

Traziam o boi laçado pelo pescoço, e aí não teve escapatória. Adentraram pela porteirinha, um camarada puxando, outro empurrando o animal de pelo luzidio de suor.

Ao final do corredor da vida, o verdejante pasto. Acompanhei por cima do muro. Timidamente o novato cabisbaixo se viu rodeado de seus semelhantes, alguns velhos conhecidos de outras pastagens. Indagado sobre como veio parar ali respondeu, que seu coroa vivo o vendeu por ter ficado apertado de grana com a chegada de um tal de corona vírus.”

Acho que não preciso descrever mais nada...




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Elisabeth Carvalho Santos desde alfabetizada lê tudo que aparece à sua volta. Depois de aposentada professora resolveu escrever e já publicou dois livros. Os assuntos brotam de suas observações, das conversas com amigos e são temperados com pitadas de imaginação e bom humor. Costuma afirmar que "escrever é um trabalho prazeroso e/ou um lazer trabalhoso que todo alfabetizado deveria experimentar algum dia".



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