Por Elisabeth Santos
Realmente sinto nem poder escrever
sobre pressentimentos, que eles estão à minha porta.
Ainda bem que nem sempre são fatos
tristes. Ontem tive de largar a escrita no meu computador por duas vezes: a
primeira relatei ao final do texto II. Estive com meu marido a acudir, e levar
ao Pronto Atendimento Municipal uma criança com hipoglicemia.
A segunda: estive a ver uma tourada bem à
porta de nossa residência na cidade. Somos vizinhos de uma fabricação artesanal
de carro puxado por bois, localizada no quintal mais próximo. Moramos na última
rua central, confrontando com um pasto de montarias equinas, e bois. Nossa vida
nos últimos vinte anos tem sido alegre, animada ou surpreendente como a que
ocorreu ontem. Não podemos reclamar de pacatez. Sempre aparece algo novo: “carreata”
de carros de bois de diversas localidades em ocasiões festivas; saídas de
cavalgadas a lugares sagrados; comemorações do dia dos Santos Reis; criança
aprendendo a montar numa égua das mansas; jovens saindo a passeio em grande
estilo, cada qual em seu cavalo, seja puro sangue, um quarto de pureza, ou
pangaré. Ninguém exibe preconceito: vão enturmados, seguros, cientes de suas
responsabilidades num passeio campestre repleto de aventuras, imagino eu daqui
do computador com câmera externa, acompanhando e inventando histórias.
Como ia eu narrando... ouvi um mugido
e corri a pegar o celular para fotografar. Não deu tempo. O lance foi muito
rápido. Achei que ia ver na tela de circuito externo, mas estava apagada pela
tempestade noturna que interrompeu a energia elétrica sem que eu percebesse.
Estava dormindo a sono solto. Então restou-me ouvir a sequência do ocorrido,
ver a movimentada cena tal qual tourada de Madri de filme com Sarita Montiel, e
gravar o final do “meu” relato.
Não estou enrolando. Tento fazer uma
narrativa lógica acompanhando o que ouvi antes, e vi após o: - Muuuu...
Ouvi um caminhão desligando o motor.
Fato comum. O mugido veio em seguida. Fiquei alerta!
- ‘Pera aí! Tem gado no pedaço. Deve
estar em frente ao meu portão. Verei o que ele quer. Nooossaaa! O boi não quer
descer da carreta!” - Pensei com meus botões.
O transportado teimava em não sair
porque desconfiou o que estaria a acontecer do lado de lá daquela porteirinha.
Lembrou de seus colegas que iam dar uma volta e não voltavam. Mudavam-se para fora
do país em forma de hambúrguer. Aquele boi não sabia que o esperava um pasto
espaçoso e verdinho, colegas cornos mansos, atos heroicos dignos de aplausos
quando dos desfiles de carros de boi pelo centro da cidade!
Foi por isso que ao descer da
condução que o trouxe ali... disparou ladeira abaixo pela extensão da rua
comprida, o encarregado do transporte ligeiro atrás dele a pé, o ajudante
aguardando-o pronto para jogar o laço.
Dizem que na descida todo santo ajuda,
então o boi escapou de verdade. O encarregado entrou na carreta, ligou
apressadamente o motor e foi no rastro do fujão. Dali a pouco outro alvoroço
bem à porta da minha casa. Era todo mundo voltando.
Traziam o boi laçado pelo pescoço, e
aí não teve escapatória. Adentraram pela porteirinha, um camarada puxando,
outro empurrando o animal de pelo luzidio de suor.
Ao final do corredor da vida, o
verdejante pasto. Acompanhei por cima do muro. Timidamente o novato cabisbaixo
se viu rodeado de seus semelhantes, alguns velhos conhecidos de outras
pastagens. Indagado sobre como veio parar ali respondeu, que seu coroa vivo o
vendeu por ter ficado apertado de grana com a chegada de um tal de corona
vírus.”
Acho que não preciso descrever mais
nada...
--
Elisabeth Carvalho Santos desde alfabetizada lê tudo que aparece à sua volta. Depois de aposentada professora resolveu escrever e já publicou dois livros. Os assuntos brotam de suas observações, das conversas com amigos e são temperados com pitadas de imaginação e bom humor. Costuma afirmar que "escrever é um trabalho prazeroso e/ou um lazer trabalhoso que todo alfabetizado deveria experimentar algum dia".
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