outubro 26, 2018

Programando o Desapegar

Por Elisabeth Santos



Semelhante àquela brincadeira “Bem me quer, mal me quer...” depois de ler um excelente artigo sobre “Desapego” resolvi experimentar a técnica ali descrita e desfrutar dos amplos benefícios possíveis de virem a ocorrer em minha casa.

Programei-me para cumprir corretamente as etapas, marcando dias, e horários das atividades previstas, num calendário pendurado à parede da copa, em frente ao lugar que costumo tomar à mesa do café da manhã.

A tradicional desculpa que tenho para tarefas enfadonhas:

_ Poxa! Esqueci-me do proposto... não ia ter vez.

Logo no primeiro dia das minhas férias, retirei, separei, encaixotei a tralha empoeirada no quartinho de bagunça. Coloquei tudo onde o caminhão de lixo recolhesse. Limpei bem o cômodo, e dei nota dez para o meu desempenho.

No segundo dia visitei os guarda roupas e descobri um mundo de peças de vestuário desgastadas pelo uso, e vestes sem uso, novinhas. O que estariam fazendo misturadas às roupas do uso diário? Camisetas de tamanho “P” para usar após o regime que haveria de começar na segunda feira. Vestidos de festa, tamanho GG para qual dia sendo que eu não poderia ficar mais gorda do que já estava? Seguindo o lema: “Roupa boa a gente doa” despachei o pacotão para o asilo que mantém um bazar.

Pulei um dia para o meu merecido descanso, criei coragem, adentrei na cozinha. Descartei produtos vencidos, desembalei esponjas novas escondidas no fundo de uma gaveta, vistoriei panos de prato e de mãos, e... despejei o conteúdo de três gavetas entupidas de inutilidades domésticas sobre o balcão de mármore. Analisei uma a uma: ferramenta para desatarraxar bujão de gás; instrumento para retirar a tampa do vidro de conserva; fatiadores diversos; agulha de desentupir o fogão; forminhas já enferrujadas para fazer empadinhas de aniversário; geringonça de manivela para espumar claras de ovos.

A lista era comprida, enchi quatro caixas grandes e perguntei a quem estava ao meu lado quem poderia interessar-se por aqueles objetos. A resposta foi merecida:

_ na “Esquina dos Desesperados”.

A outra pessoa que estava por ali nunca tinha ouvido falar na existência de tal esquina. Tive de explicar que os mais necessitados costumavam se juntar naquele local vendendo ou comprando coisas do “arco da velha”. Este último termo, nem eu sei a origem.

Passados uns dias, encarei a estante de livros, e fiquei lá vários dias por não saber ver letras sem juntá-las de forma a dar uma boa leitura. Meu filho, vendo-me sentada numa almofada do seu tempo de criança, entretida com um livrão filosófico, gracejou:

_ Empacada? Num local de livro “paca”, até paca empaca “paca”!- sem achar graça alguma no comentário, gastei meu sorriso forçado.

Acabei o trabalho separando em duas caixas meus livros queridos: na grande os volumes que haveriam de ser consertados; na pequena os que seriam doados a uma escola próxima da minha residência.

Ganhei, com toda essa movimentação, muita coisa boa: novo visual dos cômodos; facilidade em localizar objetos úteis; gente sorrindo feliz com as doações geradas do desapego; mais espaço, que já não seria para coisas sem utilidade no meu dia a dia, e nem para ir armazenando à toa.

Lembranças significativas do histórico familiar guardei sim, pois pretendo envelhecer e olhar com carinho, por exemplo, alguma peça de louça, mesmo que a memória me falhe no momento de afirmar quem a usou no passado.

Por enquanto não desapeguei de minha origem, nem de trechos importantes na minha caminhada terrena.



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Elisabeth Carvalho Santos desde alfabetizada lê tudo que aparece à sua volta. Depois de aposentada professora (não de Português) resolveu escrever. Colabora com o jornalzinho da família, participa de concurso cultural e coleciona seus textos para publicar oportunamente. Os assuntos brotam de suas observações, das conversas com amigos e são temperados com pitadas de imaginação e bom humor. Costuma afirmar que "escrever é um trabalho prazeroso e/ou um lazer trabalhoso que todo alfabetizado deveria experimentar algum dia".

Um comentário:

  1. Que lindo!!! Quero muito praticar isso aqui em casa... já faço um pouco, às vezes; mas, quero fazer algo planejado e pela casa toda! Gostei!

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